A marca
humana de Philip Roth
Santinômia, você já ouviu falar sobre essa palavra? Eu também não, até ler o livro “A marca humana”[1] do escritor americano Philip Roth. Ao descobrir o significado de palavras novas como essa que, para alguns, a literatura pode ser algo enfadonho, mas também um imenso campo de possibilidades de descobertas. O significado de Santinômia está associada a “modos ou aparências de santo”, ou seja, algo que transparece ou que objetiva transparecer santidade, pureza. O autor aponta essa palavra como uma característica que perdura na sociedade americana e que no Verão de 1998 ficou ainda mais realçada. Naquele ano, um escândalo sexual envolvendo o presidente americanos Bill Clinton e a jovem estagiária Mônica Lewinsky tomou conta da mídia e das conversas cotidianas dos cidadãos americanos. Um escândalo eminentemente de ordem privada e moral, mas que levando em conta o seu protagonista não deixou de causar espanto e publicidade.
É no meio desse clima de pânico moral
que tomava conta do país que a história recente do Coleman Silk, um professor
universitário de letras clássica é narrada por Nathan Zuckerman, seu amigo
escritor. Dois anos antes, em 1996, Coleman já com 69 anos de idade e na
condição de professor decano e respeitado da Universidade Athena também se viu
diante de uma polêmica controvérsia moral. A realizar uma chamada em uma de
suas aulas, utilizou a palavra Spooks para se referir aos alunos que nunca
compareciam as suas aulas, alunos tão
ausentes que o professor se quer sabia quem eram. Por ter utilizado essa
palavra ao se referir aos alunos, Coleman se viu diante de uma cruzada moral na
universidade, comandada principalmente pela professora Delphine. Os alunos
apontaram que a palavra Spooks era um termo pejorativo para falar sobre a
população negra. Apesar disso, o professor se defendeu veementemente, tendo em
vista que nem conhecia os alunos, tampouco sabia que eram negros. O sentido de
Spooks utilizado pelo professor Coleman era de algo como um elemento fantasma,
que tinha a habilidade de desaparecer. Suas alegações não foram levadas em
consideração, tampouco sua trajetória como professor respeitado e que conseguiu
diversas conquistas para a universidade. Se sentindo completamente injustiçado,
o professor preferiu pedir demissão nas vésperas da sua aposentadoria.
A esposa do professor Coleman morre
logo após a sua demissão, o que torna a raiva contra as pessoas envolvidas no
evento na universidade ainda mais patente na vida do professor. Com três filhos
que não vivem mais com ele, Coleman se vê viúvo, sozinho e tomado pelo
sentimento de injustiça. Nesse contexto, o ex-professor procura Nathan
Zuckerman, escritor que morava há pouco tempo perto da sua residência no
intuito de pedir que o mesmo escreva um livro sobre a injustiça sofrida por ele
e pela esposa que, mesmo considerada uma mulher forte, não conseguiu suportar a
dor diante do ocorrido com o marido. A amizade que parecia deslanchar em um
primeiro momento não se estabeleceu, tampouco a escrita do livro. O pouco que
Zuckerman sabe e narra sobre a vida do professor no último ano da sua vida foi
resultado de conversas esporádicas e boatos que circulava na pequena cidade
onde viviam.
O professor Zucker começa uma relação
com Faunia Farley, uma mulher com cerca de quarenta anos, semianalfabeta e que
trabalhava na equipe de faxina da universidade. Faunia sofreu constantes abusos
sexuais do padrasto quando criança, além de ter sido desprezada pela mãe. Uma
mulher que marcada pela crueldade desde a infância, se vê sozinha diante dos
desafios do mundo, sem nenhum apoio da família. A professora Delphine ao saber
da relação do professor coma faxineira, novamente começa uma cruzada não
explicitada contra Coleman, dado que considera como abusiva a relação de um
homem idoso e professor universitário com uma mulher mais jovem e
semianalfabeta. Como fica patente no livro, apesar de tomar partido na causa
dos alunos negros que se sentiram ofendidos e da relação de Faunia com Coleman,
a professora Delphine carrega consiga uma série de preconceitos de classe e
raciais. Sua obsessão pelo professor e por causas que ela considera “nobres”,
se mostram diretamente relacionados à traumas e sua incapacidade de se aceitar
e se mostrar vulnerável.
“Seu objetivo era que
seu destino fosse determinado não pelas intenções ignorantes e odientas de um
mundo hostil, e, sim, até onde era humanamente possível, por sua própria vontade.
Por que aceitar uma vida que não fosse assim?.”
A marca humana é um desses livros que
expõe algumas da feridas persistentes na sociedade americana tendo em vista seu
passado escravocrata e a restrição das liberdades e dos direitos dos negros mesmo
após a abolição da escravidão. Silk é filho de uma mulher de pele clara e de um
homem negro e apesar de aparentar ser branco, em muitos contextos as pessoas
ainda conseguiam identifica-lo e nomeá-lo como negro o que demonstra a profunda
segregação racial existente nos Estados Unidos na primeira metade do século XX.
Explorando a vida do jovem Coleman
Silk, Philiph Roth coloca em evidencia uma questão eminentemente filosófica, sociológica
e política e que toma conta do debate público contemporâneo: o de pertencer a
um grupo tendo em vista a identificação racial. Algo ainda mais proeminente na sociedade
americana. O jovem Coleman Silk não queria
pertencer a nenhum grupo racial, nenhuma identidade coletiva, queria preservar sua
individualidade. A única identificação que lhe interessava eram as que se
relacionavam com suas vontades e os seus feitos. A renúncia de Coleman frente a
sua condição racial é tão radical que ele decide se afastar da família ao casar
com uma mulher branca. Mesmo diante dos riscos de os filhos nascerem com características
físicas que pudessem revelar sua verdadeira identidade, ele segue em frente, construindo
uma família e uma carreira como professor universitário, se afastando dos
impasses e das restrições que sua origem racial poderia colocar em seu caminho.
O livro é permeado por traumas e por
aquilo que consiste em um dos principais atributos dos traumas: um
acontecimento ocorrido em algum momento da vida e que parece uma marca indelével.
Nesse sentido, mais um personagem que compõe o arco de traumas e marcas
presentes no livro é Les Farley, o esposo da faxineira que se relaciona com o
professor Silk. Perturbado mentalmente pela morte dos filhos ainda crianças
pelo que ele considera um descuido de Faunia, ele ainda se vê constantemente
chocado com as cenas e as perdas que tivera como ex-combatente na guerra do
Vietnã. Tão cotidiana quanto sua dor é a
sua revolta, diante da política e da precariedade e pouca efetividade das políticas
para reduzir os danos mentais e materiais na vida dos que sobreviveram a
guerra. Sem contar sua xenofobia, principalmente em relação a qualquer “olho
puxado” que esteja diante si. Les é um ex-combatente de guerra que demonstra
que o patriotismo de nada vale diante das sequelas da guerra.
Acho que devo parar por aqui para não
revelar ainda mais sobre essa história que constitui um relato significativo da
sociedade americana no fim do século XX. O retrato de um homem que perseguiu
suas próprias vontades, assumiu os riscos e perdas e construiu um mundo para si,
mas as normas sociais e de decoro, junto com o punhado de hipocrisia que os acompanha,
tardou, mas não falhou em se impor na vida do professor Coleman Silk.
“A liberdade é perigosa. A liberdade é muito
perigosa. E nada é exatamente como você quer durante muito tempo.”
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